O STF irá se debruçar sobre importante tema relativo ao Direito do Consumidor a partir do julgamento da lei paulista 15.659/15, que trata dos cadastros de proteção ao crédito e foi questionada por diferentes ADIns.
A norma originou-se do PL 1.247/07, de autoria do deputado Rui Falcão, que justificou a proposta sustentando que os serviços de proteção ao crédito “funcionam mais como instrumento de proteção ao capital, do que dos financiados, os consumidores”.
O PL recebeu veto total do governador Geraldo Alckmin. Na visão do Executivo, a iniciativa era inconstitucional, em razão da impossibilidade do Estado legislar sobre a matéria, por ultrapassar os limites fixados pela CF no âmbito da competência concorrente.
Ato contínuo, a Assembleia Legislativa derrubou o veto parcialmente e promulgou a lei.
ADIns
A Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas ajuizou ADIn (5.224) no STF contra a lei 15.659/15, sob o mesmo argumento do governador Alckmin para vetar o projeto: a entidade sustenta que a lei afronta o artigo 24, parágrafo 1º e 3º, da CF ao estabelecer novas normas gerais em matéria já regulamentada por legislação Federal no CDC.
Logo depois, foi a vez da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo propor ADIn (5.252). Para a entidade, a norma, que determina, entre outros, a comunicação prévia e por escrito dos consumidores sobre a inclusão de nomes em cadastro de inadimplentes, violou a competência legislativa da União.
Pois bem, para fechar o número de ações, foi a vez do governo do Estado ajuizar ação (ADIn 5.273), repisando os argumentos anteriores.
Em 13/3, o desembargador do TJ/SP Arantes Theodoro, do Órgão Especial, suspendeu liminarmente os efeitos da lei (Direta de Inconstitucionalidade 2044447-20.2015.8.26.0000).
Questões relevantes
As principais questões envolvendo a lei 15.659/15 originam-se do art. 1º:
“A inclusão do nome dos consumidores em cadastros ou bancos de dados de consumidores, de serviços de proteção ao crédito ou congêneres, referente a qualquer informação de inadimplemento dispensa a autorização do devedor, mas, se a dívida não foi protestada ou não estiver sendo cobrada diretamente em juízo, deve ser-lhe previamente comunicada por escrito, e comprovada, mediante o protocolo de aviso de recebimento (AR) assinado, a sua entrega no endereço fornecido por ele.”
De acordo com o artigo, é possível a inscrição do nome do consumidor no malfadado cadastro sem sua prévia ciência se o débito tiver sido protestado ou sendo cobrado em juízo; e há necessidade de que a comunicação por escrito deve ser comprovada mediante o protocolo de aviso de recebimento assinado.
Quanto a este último ponto, há súmula do STJ (404) em sentido diametralmente oposto, a saber: “É dispensável o aviso de recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros.”
Amicus curiae
A OAB requereu ingresso como amicus curiae na ADIn 5.224, da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas. A Ordem entende que a lei é constitucional, pois não há competência concorrente entre o CDC e a presente legislação. Quanto à correspondência com Aviso de Recebimento, segundo a OAB, esta tem como finalidade “proporcionar ao consumidor, transparentemente, informações claras, precisas e objetivas quanto a eventuais restrições que possam existir, com relação a sua pessoa. Essa comunicação deve ser efetuada a fim de permitir ao consumidor, no seu sentido lato, o exercício da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa.”
Processos relacionados : ADIns 5.224, 5.252 e 5.273
Acerca do relevante tema, confira na íntegra o artigo especial do desembargador aposentado do TJ/SP Rizzatto Nunes, professor livre-docente pela PUC-SP e autor da coluna ABC do CDC.
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É inconstitucional a Lei paulista nº 15.659/15, que criou novas regras para os cadastros de proteção ao crédito (2/4/15)
Por Rizzatto Nunes
A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo aprovou a Lei nº 15.659, de 9-01-2015 para regulamentar “o sistema de inclusão e exclusão dos nomes dos consumidores nos cadastros de proteção ao crédito”
Referida Lei é oriunda de um projeto que foi totalmente vetado pelo Governador Geraldo Alckmin por vício de inconstitucionalidade. Mas, o veto foi parcialmente derrubado (mantido apenas o do art. 5º). O teor dos demais quatro artigos que interessam é o seguinte:
“Artigo 1º – A inclusão do nome dos consumidores em cadastros ou bancos de dados de consumidores, de serviços de proteção ao crédito ou congêneres, referente a qualquer informação de inadimplemento dispensa a autorização do devedor, mas, se a dívida não foi protestada ou não estiver sendo cobrada diretamente em juízo, deve ser-lhe previamente comunicada por escrito, e comprovada, mediante o protocolo de aviso de recebimento (AR) assinado, a sua entrega no endereço fornecido por ele.”
“Artigo 2º – A comunicação deve indicar o nome ou razão social do credor, natureza da dívida e meio, condições e prazo para pagamento, antes de efetivar a inscrição.
Parágrafo único – Deverá ser concedido o prazo mínimo de 15 (quinze) dias para quitação do débito ou apresentação de comprovante de pagamento, antes de ser efetivada a inscrição do nome do consumidor nos cadastros de proteção ao crédito”.
“Artigo 3º – Para efetivar a inscrição, as empresas que mantêm os cadastros de consumidores residentes no Estado de São Paulo deverão exigir dos credores documento que ateste a natureza da dívida, sua exigibilidade e a inadimplência por parte do consumidor”.
“Artigo 4º – As empresas deverão manter canal direto de comunicação, indicado expressamente no aviso de inscrição, que possibilite a defesa e a apresentação de contraprova por parte do consumidor, evitando a inscrição indevida.
Parágrafo único – Havendo comprovação por parte do consumidor sobre a existência de erro ou inexatidão sobre o fato informado, fica a empresa obrigada a retirar, independentemente de manifestação dos credores ou informantes, os dados cadastrais indevidos, no prazo máximo de 2 (dois) dias úteis.”
Recentemente, o Governado Alckmin propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal visando a declaração de inconstitucionalidade dessa Lei. E, segundo penso, com toda razão. Vejamos.
Com efeito, como se sabe, o art. 24 da Constituição Federal (CF) estabelece a competência concorrente para a União, os Estados-Membros e o Distrito Federal legislarem sobre alguns assuntos, dentre os quais fixa expressamente “produção e consumo” (inciso V do art. 24). Cabe à União, na hipótese, criar normas gerais (§ 1º do art. 24). Inexistindo Lei Federal sobre normas gerais, os Estados-Membros detêm competência legislativa plena (§ 3º do mesmo art. 24).
O Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei 8078/90), no artigo 43, regulou o mesmo tema, nesses termos:
“Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.
§ 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.
§ 2° A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.
§ 3° O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas.
§ 4° Os bancos de dados e cadastros relativos a consumidores, os serviços de proteção ao crédito e congêneres são considerados entidades de caráter público.
§ 5° Consumada a prescrição relativa à cobrança de débitos do consumidor, não serão fornecidas, pelos respectivos Sistemas de Proteção ao Crédito, quaisquer informações que possam impedir ou dificultar novo acesso ao crédito junto aos fornecedores.”
E o CDC é não só uma Lei geral, como também de ordem pública e interesse social. Lendo-se os dois diplomas, vê-se que a matéria regulada é a mesma, com o que facilmente se verificaria o conflito e a invasão de competência feita pela nova norma, concluindo-se pela inconstitucionalidade da Lei Estadual.
Mas, acontece que o §2º do art. 24 da CF estabelece que a “competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados”. Daí que, pode-se perguntar se a Lei Estadual não estaria complementando a Lei Federal.
Para responder a essa questão, anotemos primeiramente que uma Lei estadual suplementar é aquele que agrega algum detalhe a Lei geral ou que normatiza algum aspecto ou peculiaridade regional, mas sempre sem entrar em conflito com a Lei geral.
Voltemos, agora, ao exame da natureza jurídica da Lei 8078/90. Como disse, a CDC é uma Lei geral e também de ordem pública e interesse social. E mais: ele é um subsistema jurídico próprio, uma lei principiológica com caracteres especiais voltado para a regulação de todas as relações de consumo, tão caras à sociedade de massas contemporânea e representando esse importante e largo aspecto da economia. Sua leitura impõe ao intérprete, portanto, que leve em consideração que seus princípios e normas são abrangentes na regulação dos setores de interesse.
Quanto a Lei estadual, percebe-se que a intenção do legislador estadual foi, de um lado, permitir anotações sem aviso ao consumidor e, de outro, protege-lo na determinação de envio de correspondência com AR (art. 1º). Parece-me que, em ambos os casos, há conflito com o estabelecido no CDC. Não se trata de suplementação ou preenchimento de lacuna, mas de direta alteração da imputação normativa da Lei Geral. É que o § 2º do art. 43 do CDC dispõe que “a abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele”, que, inclusive, após anos de discussão judicial gerou a Súmula nº 359 do Superior Tribunal de Justiça, que diz: “Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição”.
Quanto ao aviso de comunicação mediante protocolo assinado pelo devedor com aviso de recebimento (AR) dá-se exatamente o mesmo. Não só o CDC não o exige, como depois de muita discussão solidificou-se o entendimento de sua dispensabilidade, também em matéria sumulada no STJ: “É dispensável o Aviso de Recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros” (Súmula nº 404) .
Veja-se bem. O CDC é uma lei equilibrada, que visa a harmonização das relações de consumo. A regulação feita pelo CDC dos cadastros de inadimplentes é ampla e suficiente para que o serviço funcione e para que o consumidor possa ser respeitado. Aliás, tal norma está em vigor há mais de 24 anos sem qualquer dúvida a respeito de sua capacidade de garantir os direitos das partes envolvidas.
Quanto aos demais artigos da Lei Estadual, penso que também não vingam. O art. 2º modifica consideravelmente o modo de negativação e ainda por cima altera a data de vencimento de dívida concedendo 15 dias para pagamento, o que viola o contrato estabelecido entre credor e devedor. Ou seja, não suplementa, modifica o estabelecido e, ainda por cima, invade a competência contratual privada, fixada na Lei civil e comercial.
Do mesmo modo o artigo 3º traz embaraço para os cadastros, ao criar obstáculo inexistente no CDC, além de exigir prova da inadimplência do devedor, matéria alheia ao tema regulado, imputando ao anotador conduta que não diz respeito à sua área de atuação. A responsabilidade por eventual incorreção da anotação é, evidentemente, do credor que forneceu os dados.
E o artigo 4º repetiu o vício insanável, modificando as exigências para a anotação e para o cancelamento, o que está francamente disciplinado no § 3º do art. 43 do CDC.
Assim, por todo o exposto, penso que a Lei Estadual paulista nº 15.659/15 é inconstitucional.